CAPÍTULO 10 - É Prova de Fé e não de Respeito

A inconclusividade existe porque subsistem pelo menos duas possibilidades para explicar a origem da força capaz de produzir o sobrenatural, ainda que uma delas seja mais provável, a outra não pode ser descartada e ambas mantém forte fundamento racional. Uma primeira opção nos leva à concretude, em que a Propriedade Evolutiva da Matéria (PEM) alcança a intelectualidade, e como alternativa de sobrevivência expande seu controle a outros mundos decorrendo uma dominação tecnológica e conseqüentemente cultural. Em sua variante mais radical a vida se restringe ao âmbito tridimensional, tudo existe na matéria e sem ela nada existe, restando apenas uma fantasiosa versão da divindade como facilitadora da gestão social. O desdobramento de tal pensamento é o trivial, ou seja, o nada. Tudo existe aqui e agora e o que percebemos é tudo, a vida se resume a matéria e não há vida fora da matéria, ponto final.

A segunda opção, bem mais complexa, não necessariamente se contrapõe a PEM para dar lugar a um Criador, tem fundamento na Teoria das Cordas e impõe um incremento extradimensional alheio ao mundo material que tateamos. Despreza a questão originária na formação da vida e se atém ao tema crucial de nossa destinação, de sermos, ou não, resgatados em sobrevidas após a morte corpórea. Caso não haja a continuidade viva em espírito, novamente chegamos a uma condição elementar, nossa vida só existe na matéria e nela tudo se encerra. Por outro lado, se quando do colapso corporal formos resgatados a uma existência em espírito, inúmeras possibilidades se desdobram, e aqui nos interessa a questão enigmática da correlação entre a vida carnal e a sobrevida em espírito.

Se fosse possível espiar o mundo dos mortos e previr o que mais duradouramente nos aguarda, sem dúvida zelaríamos e monitoraríamos nossa existência carnal como fonte de bênçãos e de maldição, pois temos consciência da disparidade temporal entre os anos vividos e o que se possa considerar pela eternidade. No entanto, a sobrevida em espírito se apresenta de forma incerta e com um trâmite reverso independente ao nosso controle, tornando-se imprevisível e indeterminável. Perante a incerteza da sobrevida em espírito, o homem justifica sua incoerência nos momentos de fraqueza, porque compreende que a vida é um risco no céu diante do tempo insofreável e deveria conter-se a tudo que lhe desfavorecesse em sua própria eternidade. Desta forma, faria do seu corpo meio e do espírito fim, cederia sua fartura à fome alheia e de sua boca só se ouviria verdade. No entanto, somos tomados de movimentos pendulares derivados da incerteza, que nos fazem fraquejar diante de nossos próprios conceitos.

Apesar dessas incertezas podemos inferir que diante da simples possibilidade de uma existência posterior atrelada ao mundo presente, a vinculação dos dois mundos se dá conforme as palavras Daquele que falou sobre esses mundos com maior autoridade. Toda Sua história respalda a interligação desses mundos, em que Ele veio primeiro e predisse que outros fariam mais do que Ele. Assim, esses outros, embora façam o sobrenatural com maior abundância, jamais se compararão a posição do Primeiro que os enunciou, já que Sua existência em nuances foi predita em escrituras prévias, embutindo não apenas Sua capacidade de exercer o sobrenatural, mas todo planejamento profético que revela uma vontade superior, sugerindo por meio delas Sua primazia.

Mas as palavras do Ungido foram plácidas como de um cordeiro, totalmente desprovidas de imposição, de um tom que variava entre a orientação e a censura; somente por duas vezes o Messias foi rigoroso: quando da expulsão dos mercadores e diante da figueira preguiçosa. Analogamente, a mão pesada do Eterno já não sobrevém precedida de advertências como nas dez pragas do Egito. Suas dádivas e Seus desamparos podem nos recair, mas temporalmente descompassados de nossos méritos e de nossas infâmias, impossibilitando a correlação. A conclusão é que o Todo Poderoso já não se mostra imediatamente poderoso, e que Seus preceitos são de longo a longuíssimo prazo, suscitando dúvida em razão da dissociação temporal.

Assim, a fé ganha realce não apenas pela imperceptível existência de Deus, mas também por Sua inércia que acarreta numa falta de prontidão das graças e infortúnios para com as nossas benevolências e transgressões. Bem temos dito que colhemos aquilo que plantamos, mas o tempo irregular de safra nos impede de associar os bons feitos às recompensas e os maus feitos às conseqüências. Somos atentos ao imediatismo, e ninguém pula do alto do penhasco porque respeita a lei da gravidade; sabemos que será implacável sobre o nosso corpo e durante todos os segundos de nossa vida não nos esquecemos disso jamais. Nossa convicção é plena e constante porque percebemos sua atuação instantânea e por isso mantemos permanente atenção aos seus efeitos e nos cercamos de cuidados ao desafiá-la.

Obedecemos cegamente à lei da gravidade não por sua teoria, que mal era compreendida antes de Newton, mas por seus efeitos que se traduz em um castigo imediato a quem lhe fere; portanto, Deus além de invisível nos é oscilante entre o lépido e o estático, dificultando nossa compreensão pela falta de associação imediata às bênçãos e maldições. Talvez porque a convicção de vida após o colapso corporal seja incompatível com o instinto de sobrevivência do próprio corpo, uma vez que tal consciência comprometeria o medo da morte, faltando aos mais sofridos garra para continuar a viver. Porém, a obediência não foi o requisito maior, o preceito de um mundo espiritual inclui nele um enigma de fé, de crer sem ver, sendo esse seu substrato, embora certa dose de revelação do sobrenatural nos tenha sido permitido conhecer para que não restasse apenas um mundo material a transmitir um vazio igualmente incompatível com o nosso instinto de sobrevivência.

A forma velada como o reino espiritual se apresenta cria uma força de incerteza que atua genericamente sobre os homens, fazendo diferenciar o respeito da fé, pois se nos quisesse de uma dedicação cega, pretensamente o Criador nos faria servis como formigas operárias. Mas o parâmetro exigido é de servir sem conhecer o seu Senhor. Em conhecendo e formando exata consciência de Sua existência, o serviria pelo simples preceito de obediência, até mesmo porque se requereria menor esforço do que dispensamos à matéria. Portanto, se Deus se revelasse exigir-se-ia prova de respeito e não de fé, porque o respeito é dado ao que é visível, enquanto a fé se guarda para O que está oculto. Assim, obedecemos continuamente ao penhasco e não nos aproximamos do precipício temendo seu castigo, mas hesitamos diante do Deus que acreditamos ter criado o próprio penhasco.

O Mestre nos ensinou que a fé move montanhas, e se capaz mover a massa bruta e pesada muito mais pode pelo espírito leve e puro. Por tudo isso, a fé há de ser a maior arma do mundo espiritual, forjada no mundo material, que alcança novas consciências podendo nos conduzir ao amor e a esperança, mas nem a esperança, nem o amor nos levarão a fé. A esperança é um estado de espera de expectativas futuras, enquanto a fé é a certeza presente de que a esperança já foi concretizada, é ousada e declarada, não age na divisão das migalhas, mas age na multiplicação dos pães. A esperança é desejosa e tímida, é querer entrar na água sem se afogar, enquanto a fé caminha sobre ela.

O Mestre também preceituou o supremo amor a Deus, seguidamente pelo amor aos demais, uma determinação relativística que hierarquiza as prioridades do mundo, e sempre se dará em troca, ou barganha, dentre as próprias opções da matéria. O amor, nas palavras de Carl Sagan, é uma invenção dos mamíferos, uma emoção que transcende as leis biológicas da sobrevivência desencontradas nos demais reinos da natureza. Mas a fé é muito maior, abrange os preceitos mundanos do amor e se estende diretamente aos enigmas espirituais inalcançáveis a nossa compreensão. Entender a fé seria como um cego de nascença compreender as cores, das quais tão somente se poderia alcançar um entendimento correlacionado e abstrato. Lembremo-nos que o maior entre os homens nascidos de mulher foi João, o batizador, e nele vemos a anunciação em gritos contra a iniqüidade, não alisou e nem aliviou a concupiscência de Herodes, tudo fez pela consciência de sua intrínseca missão, e literalmente perdeu a cabeça pela fé.

O Mestre nos deu outros parâmetros para entender a fé; disse que não se pode servir a dois senhores simultaneamente, e que aquele que quiser ganhar a vida a perderá. Mas Suas mensagens foram esquecidas, e privilegiamos o nosso egoísmo sob a justificativa da incerteza, porque diante da correlação das vidas, material efêmera e espiritual eterna, não deveríamos admitir posições intermediárias. Atitudes meeiras sempre promoverão uma frustração, enquanto posturas radicais oferecem maior plenitude, pois aquele que se devota fervorosamente, se ao morrer encontrar a Deus, locupletar-se-á, e se isso não acontecer, não o saberá; já o ateu que nada espera nada encontrará, mas se a Deus encontrar, mal também Ele não lhe fará.

Num cenário em que a ciência vence meias verdades do passado, o sobrenatural se apresenta como alicerce da fé, pois o próprio Messias recomendou que considerassem os milagres que Ele próprio realizava. Tais realizações possuem uma correlação precípua com o além, e resultam numa transformação radical da imagem de Deus, pois aos que são prestadas revelações passa a exigir prova de respeito e não mais de fé, porque em não sendo mais oculto e pela certeza de Sua existência revelada, haverão de obedecê-Lo em todas as suas vontades, enquanto aos que ainda lhe permanecem puro e velado lhes será exigido menor rigor, pela diferenciação de que para um está invisível e imaginário, enquanto para outro se mostra real e pleno. Os puros de coração que crêem pela simples palavra, muito pouca confirmação terão solicitado do além, estando mais livres para realizar suas ações no que concerne à responsabilidade imputada.

Esta seria a mensagem que o Mestre deixou a Tomé quando quis ver Suas chagas, mas o entendimento avançou e o mundo mudou, porque agora desassociamos o vínculo pleno do sobrenatural com o além, e passamos a cogitar que fatos inéditos e inimagináveis possam ser realizados por seres carnais vindos do outro lado do universo, pois vemos a possibilidade da história estar se repetindo de quando os indígenas foram iludidos pelo homem branco que veio do outro lado do Atlântico. Não quero desfazer a benção dos crêem sem ver, nem de forma alguma opor aos ensinamentos do Ungido, porque Ele é o Mestre fonte da verdade, mas quero resguardar a dúvida e conseqüentemente valorizar a fé que só pode existir diante da incerteza. E o Mestre tanto admirou a fé que muitas vezes alterou Seu caminho para atender aos que Nele a depositaram.

Historicamente, lembremos que no início da civilização o homem esteve totalmente atrelado aos seus deuses, vinculando o sobrenatural com o plano espiritual e sua conseqüente sobrevida, mas partir do iluminismo se mostra menos disponível, mais acelerado, mais reticente. É o mesmo homem, ainda com espaço para Deus em seu pensamento, mas com alguns séculos de evolução. Nesta trajetória o intelecto humano tentou dar explicações a tudo, e sempre desafiou o sobrenatural para diminuí-lo, ou desvendá-lo, mas o mundo sem o sobrenatural seria áspero e sombrio, puramente material, que transformaria toda teologia humana em lenda jocosa, instrumento de manobra das massas, pois a lógica da possibilidade de compensações em mundos posteriores abafa os ânimos inflamados pela injustiça e pela desigualdade. Essa versão calmante torna o homem dócil, submisso, aceitador de seus desígnios, que se regozija de sua dor, dando sustentação a uma trama calorosa que coloca em jogo a eternidade, título de maior valor que possa conceber.

O Iluminismo deu ao homem uma grande sensação de poder, parecendo razoável pensar que fosse capaz de explicar todos os acontecimentos relatados na história humana sem o expediente de elementos invisíveis e intangíveis à nossa realidade. Imaginou o homem sucumbir a espiritualidade ao definir em modelagens matemáticas o comportamento dos astros, vindo a cogitar que tudo poderia ser descrito em gigantescas equações. Desde então renomados filósofos desenvolveram questionamentos sobre a existência de Deus e culminaram por decretar Seu pretenso funeral, mas a história humana possui movimentos cíclicos e multidirecionais, paralelos e simultâneos, tornando impossível em nosso atual estágio tecnológico entender o labirinto da ciência, pois ainda nem compreendemos a complexidade da matéria visível, para soberbamente pretender determinar parâmetros do mundo invisível.

Houve sim uma época em que os trovões estavam associados a uma manifestação divina simbolizando a ira dos deuses. Mas a partir da descoberta da similaridade do DNA humano com o do reino animal, pareceria natural que os homens criassem Deus a sua imagem, ante o inverso; na verdade Deus prescinde de aparência, maior valor nos tem sido a causa que Lhe serve, capaz de ordenar as leis do universo. E mesmo que Se mantendo oculto, Sua vontade de justiça rege o equilíbrio que sustenta nossa existência, sendo esse o princípio vital e intolerante a Sua forma.

A fé do homem primitivo era restrita, pois entendia nosso mundo como o único lugar habitável do universo, e não cabia desassociar acontecimentos sobrenaturais de um poder divino que preceituava uma reexistência após o colapso corporal. A falta de uma segunda opção limitava a fé ao exclusivo entendimento de sua época. Mas o desvendar de Copérnico foi um marco no conceito da fé, pois desfez a imagem da Terra como o centro de tudo, disseminando o conhecimento astronômico que levou o homem a compreender a extensão do universo e a multiplicidade de opções para explicar nossa criação e evolução, valorizando a credulidade diante das novas alternativas oferecidas. Por último, ao tempo futuro é apresentado a Teoria das Cordas com a presença de sete novas dimensões para a hipotética reexistência energética do espírito, dando sustentação racional à sobrevida, e consequentemente deslocando a fé para um nível de menor apreciação por disponibilizar lugares reais não considerados na compreensão de outrora.

O embasamento científico da Teoria das Cordas para a existência de outras dimensões fere a nossa fé por tornar detectáveis lugares inalcançáveis aos sentidos humanos de onde se possa imaginar a sobrevida em espírito. A presunção científica de locais insondáveis torna o homem mais racional e frio aos parâmetros da reexistência na pós-morte, pois tira de si a suposição poética e ingênua de onde seria a morada da alma. Lembremos que o Mestre enaltece adjetivos de credulidade e pureza que nos leva a uma fé legítima, sem a racionalidade de sua crença.

A eventualidade da PEM e da transposição interestelar permitem cogitar a presença de seres intergalácticos, atenuando a correlação do sobrenatural com o mundo espiritual, porque agora o homem assiste o extraordinário com a possibilidade de uma segunda explicação para a origem de sua força executora. A perspectiva de seres extraterrestres realizarem fantásticas proezas é exposta não para diminuir a Deus, mas para realçar a dúvida em relação a origem da força capaz de provocar o sobrenatural e conseqüentemente valorizar a fé. Só por meio de uma segunda hipótese é possível suscitar a dúvida e estas páginas têm como fundamento oferecer uma alternativa racional que esmoreça a certeza dos que pensam soberbamente.

Independente de qualquer acontecimento sobrenatural que possa nos acometer, o mundo espiritual agora permanece incerto. Se a incerteza desmoronasse não haveria fé, mas apenas respeito e obediência aos mandamentos do Criador. A fé só pode existir diante da inconclusividade que persiste e este é o maior valor destas páginas, em mostrar-lhes a falta de certeza pela impossibilidade de descartar qualquer das hipóteses, deixando-os assim, mais livres e menos responsabilizados aos seus atos e omissões. Na ausência de um mundo espiritual, tudo que se deixou de usufruir em nome da fé não foi perdido, porque serviu para construir o mundo presente. Plantou-se o amor, o perdão e a misericórdia, porque sabiam serem estes os alicerces de nossa sociedade e que em sua falta, desmoronaria.




* Ver Karl Seagan e Stephen Hauking